Uma reflexão acerca da atuação do profissional que lida com pessoa em sofrimento psíquico, não apenas por meio da perspectiva do trabalho, mas, sobretudo, da esfera do indivíduo, o Articulando Redes foi realizado nesta quarta-feira, 4, e trouxe como tema um questionamento: “O que nos impede de cuidar em liberdade?”. O evento foi criado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA, por meio da equipe de Saúde Mental ligada à Especializada de Direitos Humanos e, devido ao distanciamento social, foi realizado virtualmente com transmissão pelo Youtube e Facebook da Instituição (@DefensoriaBahia).
Mediado pela doutora em Saúde Coletiva e assistente social da DPE/BA, Patrícia Flach, o Articulando Redes teve como primeira convidada Renata Filgueiras Pimentel, que é trabalhadora da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, militante da luta antimanicomial e representante do Coletivo Intercambiantes. Ao introduzir o tema, a profissional lembrou que a liberdade é uma questão cara para a reforma psiquiátrica.
“A reforma psiquiátrica traz o direito ao cuidado em liberdade como marco fundamental para atenção às pessoas que se encontram em intenso sofrimento psíquico e que só tinham como proposta de ‘tratamento’ o manicômio, com seu modelo de exclusão e mortificação das subjetividades. Falar em reforma não é falar sobre algo que mudou da noite para o dia. Falamos de mudança de paradigma e cultura, que é uma mudança processual, extremamente difícil e complexa”, explicou a convidada.
Ao longo da sua fala, Renata Filgueiras apresentou dimensões que devem ser consideradas ao pensar sobre o processo do cuidado em liberdade, de acordo com a sua visão. São elas a territorialidade, o saber e a solidão, esta última em contraste com a coletividade. Sobre a primeira dimensão, é preciso considerar questões como a história de vida da pessoa que se encontra em sofrimento psíquico, além das relações e os conflitos existentes em seu contexto.
“O que a gente vivencia nessa dimensão do trabalho no território é que é de extrema importância para o cuidado das pessoas onde a vida acontece, mediando as relações, trabalhando a mudança de cultura junto às famílias, à comunidade, pensando esse sofrimento que as pessoas estão vivenciando como algo que está dentro de um contexto”.
Neste ponto, existem entraves como o baixo número de Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – CAPS AD nos municípios, que interfere não apenas no senso de acolhimento por parte do indivíduo, que precisa se distanciar do seu território, mas também traz limitações para o trabalho do profissional. Tais limitações também produzem institucionalizações.
“Se uma pessoa está o dia inteiro, todos os dias da semana, dentro do serviço como o único lugar que ela acessa, não seria aí também uma institucionalização? Precisamos pensar em um cuidado em liberdade que não está somente fora dos muros do manicômio. Não é apenas acabar com a instituição manicômio. Existem diversas formas de dominação, cerceamento, objetificação dessas pessoas na nossa realidade, nossa sociedade e nosso serviço”.
Sobre a dimensão do saber, a representante do Coletivo Intercambiantes destaca que o profissional está situado em uma posição onde deve saber sobre o outro e responder sobre com cuidá-lo. No entanto, o profissional se encontra diante de pessoas em intenso sofrimento psíquico e, nem sempre, encontra caminhos para auxiliá-lo. O primeiro passo, neste caso, é aceitar que não é um sujeito onipotente e compartilhar tal situação com a equipe para buscar soluções coletivas.
“O trabalhador é um sujeito que se vê esgotado em muitos momentos, sem energia e adoecido, com manifestações inclusive em nossos corpos. Tenho aprendido a olhar os sinais do meu corpo que falam sobre mim, meu contexto, meu trabalho. Sobre essa rede que é insuficiente e as diversas portas fechadas que nós encontramos. Muitos trabalhadores vivenciam contextos difíceis de vida, com violência em casa, mas chegam no trabalho e precisam cuidar das pessoas”.
Renata Filgueiras afirma que é neste cenário onde se insere a terceira dimensão, a da solidão, quando é preciso cuidar do outro enquanto o próprio profissional se encontra adoecido. O segredo, no entanto, não é o isolamento, mas sim compartilhar com o coletivo a sua própria experiência.
“A dimensão da solidão é desafiadora em nosso trabalho. Encontrar o caminho da coletividade para dar conta de situações que são tão mobilizadoras, adoecedoras, limitantes. Devemos colocar alguns entraves que encontramos, mas é importante olharmos para a dificuldade não a partir de um lugar que paralisa, pois não é possível construir nada. Precisamos encontrar o caminho da potência, da possibilidade, pois se eu consigo encontrar o que é possível para mim, consigo me movimentar nessa direção. Se o meu braço está junto com outros, é possível ter uma efetividade muito maior”, finalizou.
Médico sanitarista e professor de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Emerson Merhy foi o segundo convidado do Articulando Redes desta quarta-feira. Em sua abertura, resgatou a questão do não saber no contexto atual da pandemia de Covid-19 e o quanto este cenário reforça a importância fundamental da ciência.
“Não saber é um desafio que nos convoca, não só para produzir saber como um ato de um cérebro genial, mas também para ir ao encontro do outro. A produção de um não saber exige de nós uma simetria no encontro, uma relação sem soberania. O enfrentamento dessa condição de não saber é a grande plataforma de produção de uma inteligência coletiva”, afirmou.
Merhy abordou o desafio do cuidar em liberdade diz respeito não apenas a existência para além dos muros dos manicômios, que não se reduzem apenas a uma estrutura física e literal, mas como processos que geram a castração do desejo, a diminuição das conexões existenciais. A manicomialização torna-se, então, um processo que atinge não apenas os pacientes, mas também os trabalhadores, os quais operam segundo a lógica do empobrecimento das existências.
“A produção da liberdade não é um ato imaginário qualquer, é o enriquecimento efetivo das existências. Quanto mais rica em conexões múltiplas, mais livre a existência será e mais desejos é convocada a produzir. Isso é absolutamente substancial quando pensamos no conjunto de experiências que vivemos e que ninguém arrancará de nós, pois está escrita nas nossas relações e modos de viver. É impossível quem já experimentou tudo isso, viver manicomialmente”.
A respeito do questionamento lançado no tema do encontro, Emerson Merhy lança uma outra provocação: “quem nos impede de cuidar em liberdade além de nós mesmos? Esse mundo que nos impõe regras éticas que não desejamos? Nós podemos inventar outros. Quando colocam o articulando redes, estão nos convocando para essa produção de tecer redes na qual eu vou agregar elementos”, finalizou.
Supervisor da equipe de saúde mental da Defensoria, Antônio Nery Filho abordou a diferença entre o cuidar e o tratar, destacando o teor humanizado e permanente existente na primeira conduta. “A palavra cuidar significa tomar as mãos do outro nas suas e sustentá-las. Tratar é dar remédio, é biomedicalizar, destituir o sujeito de desejo. É impor ao sujeito uma realidade medicamentos produzida por um efeito transitório”. Antonio Nery Filho também resgatou a dimensão da solidão, trazida por Renata Filgueiras, além da construção da liberdade, a partir do compartilhado por Emerson Merhy.