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Núcleo de Igualdade Étnica compõe a Caravana de Direitos Humanos na Aldeia Mirandela

Foram mais de 50 casos atendidos pela DPE/BA com um grande números de retificação de documentos, pensão alimentícia, divórcio e adoção.
13/06/2025 09:06 | Por Thais Faria
Núcleo de Igualdade Étnica compõe a Caravana de Direitos Humanos na Aldeia Mirandela
Núcleo de Igualdade Étnica compõe a Caravana de Direitos Humanos na Aldeia Mirandela

“Eu vim aqui hoje na Defensoria colocar no meu sobrenome o Kiriri. Essa é uma das formas de honrar e respeitar as conquistas dos meus ancestrais e dos anciãos do meu povo. Agora eu terei o meu nome completo: João Kiriri dos Santos!”. Esse é o depoimento de João, uma das lideranças jovens do povo Kiriri que fez a retificação dos seus documentos para celebrar a sua etnia indígena.

A Defensoria estacionou a van do Núcleo de Defesa das Mulheres (Nudem) em frente ao Colégio Estadual Indígena José Zacarias. A itinerância mobilizou a aldeia Mirandela nos dias 10 e 11 de junho. Foram mais de 50 atendimentos feitos pela DPE/BA, entre eles retificação de documentos, pedidos de pensão alimentícia, divórcio e adoção. Uma das pessoas atendidas foi Gabriela de Jesus, aposentada, que veio resolver a documentação do filho Davi de Jesus. No documento dele constava o sexo feminino, o que o impedia de ter acesso aos demais documentos e entrada de benefícios. “O documento do meu filho sempre teve esse problema e eu nunca tive condições de acertar o registro dele. Mas a assistente social me avisou que vocês vinham e que poderiam me ajudar. E ajudaram! Agora ele tem o registro certo!”, afirma Gabriela. 

Outra pessoa que também veio retificar os documentos foi Cosme dos Santos. Separado da antiga esposa há mais de 5 anos, ele encontrou na Caravana a oportunidade de regularizar a sua situação. “Eu sou trabalhador rural e tinha muita dificuldade de ir até a cidade para ajustar os documentos. Não tive tempo de cuidar disso até hoje. Já passei por muita coisa nessa vida. Não cai uma folha da árvore se Deus não quiser e Ele abriu as portas de vocês para eu conseguir fazer isso hoje”, diz Cosme.

Já Lyra Santos, dona de casa, nasceu e vive na aldeia Mirandela, no território Kiriri. Mãe de duas crianças, ela compartilha uma trajetória marcada por desafios, mas também por coragem e amor. Há alguns anos, ela vem sendo acompanhada pela Defensoria Pública da Bahia em um processo de guarda, que teve um momento crucial recentemente. “O genitor das crianças descumpriu todas as medidas e levou elas para outro município. Eu não gosto nem de lembrar, porque até hoje me afeta. Sozinha, eu não conseguiria.” O resgate das filhas envolveu ordem judicial, apoio policial e, principalmente, o suporte constante da Defensoria. “Foi horrível imaginar aquela cena, mas a Defensoria foi essencial. Sempre fui muito bem atendida, tanto pelo pessoal do atendimento quanto pelas defensoras. Se não fossem elas, eu não saberia por onde começar.” Hoje, com as crianças ao seu lado, Lyra segue acompanhada pela instituição e encara mais uma etapa: a regularização definitiva da guarda. “É mais uma luta. Mais um ano juntos. E eu só tenho a agradecer.”

Capitaneada pelo Núcleo de Igualdade Étnica (NIE), essa foi mais uma itinerância dedicada aos povos indígenas da DPE/BA. Aléssia Tuxá, coordenadora do NIE, evidencia a importância de ir até onde essa parcela da população está e precisa. “O que se verifica nessas itinerâncias é que estamos chegando onde geralmente o poder público não chega e que é onde mais se necessita, onde ocorrem muitas violações de direitos ou até mesmo a negação deles”. Também compuseram os atendimentos as equipes das unidades de Ribeira do Pombal e Paulo Afonso. As defensoras Larissa Rolemberg, Regina Leitão e o defensor Alexandre Cabral fortaleceram os atendimentos na Caravana. “Os nossos atendimentos se finalizam hoje no território, mas as unidades continuam de portas abertas para toda a comunidade!”, afirma Larissa Rolemberg, coordenadora da 10ª  regional.

A história do povo Kiriri é marcada pela resistência, pela fé e pela força coletiva na defesa do território tradicional. Localizado no município de Banzaê, entre o agreste e o sertão nordestino, o território Kiriri abrange uma área de aproximadamente 12 mil hectares e abriga cerca de 3 mil indígenas. A retomada da terra foi fruto de décadas de mobilização frente à ocupação por posseiros e à ausência de garantias do Estado.

A luta territorial culminou em 1995, com a retomada definitiva da Vila de Mirandela, após uma série de ocupações organizadas pela comunidade indígena desde a década de 1980. Essa conquista é celebrada todos os anos, no dia 11 de novembro, data simbólica da reconquista de Mirandela, quando os Kiriri realizam uma grande festa que reúne turistas, parentes de outras aldeias e representantes do poder público. 

Apesar das conquistas, o povo Kiriri segue enfrentando desafios constantes — seja na luta por políticas públicas específicas, seja na resistência frente às ameaças aos seus modos de vida. “É um povo que se mantém firme na busca por educação e saúde de qualidade, além da participação nos espaços de decisão”. Essa é uma das declarações do Cacique Bernardino de Jesus, uma das 8 lideranças do território Kiriri. 

“Esse território foi conquistado com muito sofrimento. Foi luta, foi perda de vida. Hoje, com o território demarcado, a gente se sente com um passo livre. A gente pode voar, pode sonhar, pode conquistar o que quiser. A fibra que usamos para trabalhar, que é a pindoba — no nosso idioma, chamamos de pinoyó — antes a gente tinha que sair do território para buscar. Hoje, ela está aqui. Aqui também é o lugar da palha da licurizeira, que é um dos elementos que nos representa como povo. Quando chegamos em Mirandela, essa terra estava pelada, sem nada. Mas depois de cinco anos, vimos nossa terra se vestindo todinha de verde. Hoje, ela está cheia de vida. Graças a Deus e aos nossos protetores, sempre soubemos respeitar a natureza. E hoje estamos cercados de planta, de remédio, de cura — para nós e para quem precisar.”, conta o Cacique.

Conheça um pouco da história de resistência Kiriri:

  • 1979 – Início da organização da roça comunitária em Baixa da Catuaba;
  • 1981 – Demarcação da Terra Indígena Kiriri, com 12.320 ha;
  • 1982 a 1989 – Ocupações progressivas de fazendas e povoados, como Lagoa Grande, Baixa da Cangalha e Picos;
  • 1987 – Indenização e reassentamento de 37 famílias de não-indígenas pela FUNAI/INCRA;
  • 1989 – Tentativa frustrada de tornar Mirandela sede do novo município de Banzaê, em manobra para afastar a presença indígena;
  • 1990 – Homologação da Terra Indígena Kiriri (Decreto nº 98.828, de 15 de janeiro);
  • 1995 – Retomada de Mirandela pelos Kiriri, com retirada definitiva dos não-indígenas;
  • 1996 a 1998 – Retomadas de outros povoados (Gado Velhaco, Marcação, Araçá, Segredo e Pau Ferro), consolidando a presença Kiriri em todo o território.

Essa trajetória se tornou referência nacional na luta pelos direitos territoriais indígenas, influenciando outras retomadas em diferentes regiões do país. A história do povo Kiriri, inclusive, está registrada em produções acadêmicas, como o livro “Os Kariris de Mirandela: um grupo indígena integrado”, da pesquisadora Maria de Lourdes Bandeira (UFBA, 1972), que documenta parte da trajetória e das estratégias de resistência desse povo originário.

A demanda coletiva mais apontada no território hoje são as condições da educação oferecida. O Colégio Estadual Indígena José Zacarias enfrenta diversas dificuldades estruturais como a de instalações elétricas e de equipamentos para um melhor desenvolvimento das aulas. Outra ponderação feita pela comunidade é a atenção à formação e cuidado de crianças e adolescentes do espectro autista, que não tem acesso a programas de tratamento e adequação na educação desses indígenas.