COMUNICAÇÃO

Prazer, Naira Gomes! Conheça a nova ouvidora-geral da Defensoria Pública

23/07/2023 15:27 | Por Thaís Faria - DRT/BA - 6618

Mulher negra, feminista, filha de Oxum e co-fundadora da Marcha do Empoderamento Crespo, Gomes fala sobre sua luta e como usará sua vasta experiência no biênio de 2023-2025

“A minha gestão será regida por uma política do afeto!”. Esse é um dos primeiros compromissos de Naira Gomes, quinta mulher negra eleita ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA). Eleita para o biênio de  2023-2025, a nova ouvidora busca fomentar uma política de igualdade e empoderamento na instituição, canalizando as energias da Ouvidoria Cidadã. 

Naira Gomes é antropóloga pela Ufba e foi assessora parlamentar por sete anos anos na Câmara de Vereadores de Salvador e na Assembleia Legislativa da Bahia. Filha de Dona Amália, vendedora de lanches na faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Ufba, e de Seu Antônio ou “Cachoeira”, como é conhecido no bairro do Santo Antônio, onde é barbeiro há quase três décadas. 

Gomes é co-fundadora da Marcha do Empoderamento Crespo, movimento político que discute e valoriza a estética negra. Ela já reuniu mais de 30 mil pessoas nas ruas da capital baiana em manifestações. Também é co-fundadora e ex-integrante do Fórum Nacional Marielles, organização que capacita mulheres negras para ocupar espaços de representatividade, poder e decisão.

Foi considerada uma das mulheres mais inspiradoras de 2016, pela Ong Think Olga; recebeu o troféu Brasil Periferia em São Paulo; ainda em 2016, recebeu a “Comenda Mãe Runhó” no Ilé Zogodo Bogum Male Rundó, mais conhecido como “Bogum” (fundado há 182 anos); em 2017, em reconhecimento à contribuição junto ao movimento negro de Salvador, recebeu também o troféu Luiza Mahin do Ilé Osumare Araká Asé Ogodo, mais conhecido como terreiro Oxumarê, dentre outras premiações. Teve o trabalho realizado no movimento de mulheres negras da Bahia, reconhecido por instituições como a Defensoria Pública do Estado da Bahia e a Secretária de Cultura da Bahia.

Em entrevista à Assessoria de Comunicação da Defensoria (Ascom), Naira Gomes falou sobre a sua proposta de basear a gestão da Ouvidoria em uma política de afeto e também de enfrentamento ao racismo em todas as suas formas. 

Ascom: Como você definiria a pessoa Naira Gomes e como isso contribuiu para sua chegada ao cargo de ouvidora-geral da Defensoria?

NG: Antes de tudo, preciso dizer que sou uma mulher negra! Porque foi ao me entender como mulher negra que percebi qual luta me cabia, quais parcerias eram possíveis, onde eu queria chegar e onde eu estava. Sou uma pessoa que crê no amor e no afeto. Essa é uma das minhas identidades e compreendo que o espaço do movimento social, apesar de ser um lugar de dureza e de muita luta, para mim, também tem que ser lugar de amor. Tem que ter amor para a gente se curar! Eu sou mulher de Candomblé, filha de Oxum e a minha orixá traz consigo a capacidade de vencer as guerras sem derramar sangue. Eu me identifico muito com isso, porque sempre digo que foi a política quem me escolheu e aceitei essa escolha. A minha história foi marcada com muita dor, como qualquer menina negra… Muito racismo, que você ainda sente jovem, mas não consegue dizer o nome ainda. Hoje eu digo que foi racismo. Porém, essa também é uma história de reinvenção.

Ascom: Qual a sua formação e como influenciou na construção de sua identidade?

Na adolescência, eu fiz o curso de Química na Escola Técnica Federal da Bahia e, posteriormente, na Universidade Estadual da Bahia. Contudo, por me dar tão bem com a área de humanas, escolhi também fazer Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia, que foi onde me encontrei comigo mesma e com as minhas pares de luta. Estudando antropologia, passo a pensar sobre a estética negra, sobre as possibilidades de cabelo crespo e a identidade das mulheres negras. Com bases teóricas e práticas, a gente fundamenta um movimento político que ganha as ruas, a Marcha do Empoderamento Crespo.

Ascom: Quando você percebeu que precisava falar sobre a valorização estética como empoderamento de uma mulher negra?

NG: A Marcha do Empoderamento Crespo nasceu em 2015 e levou para as ruas de Salvador, em um único dia, quatro mil pessoas, sobretudo jovens, pautando a estética como um ato político. É pela estética que a polícia mata ou não, que interpela na rua ou não. É pela estética que o RH [setor de recursos humanos] te percebe como competente ou não, né? No Brasil, a gente sabe que a estética é uma ferramenta de luta, já que o racismo grita a partir da aparência. Foi a partir desse momento que minha militância foi abrangendo mais áreas de atuação como as pautas da violência contra a mulher e sobre saúde mental da população negra, pontos que foram levantados a partir da Marcha. Então, esse caminho aqui nos trouxe até a disputa da Ouvidoria. Eu estou aqui por um fruto de uma força coletiva que envolve amor, afeto, acolhimento e por isso que o slogan da campanha foi “Construir, acolher e esperançar!”.

Ascom: Você disse que a política te escolheu e você aceitou o chamado. Como foi construir a sua subjetividade como uma pessoa mergulhada na política?

NG: Eu tenho uma grande felicidade de ter um pai que paternou. Ele sempre foi – e é – meu fã, meu financiador, meu acolhimento. Infelizmente, essa é uma realidade de poucas pessoas. A maioria não tem esse apoio e afeto do pai. Mas estou aqui porque foi ele quem me resgatou do racismo, quem me ajudou a reagir a todos os discursos contrários da mídia, dos livros didáticos, das imagens que se tem de lugares de poder e das ocupações dos espaços de pessoas que não se parecem comigo. Nunca tinha nenhuma placa na porta que me colocasse para fora, mas eu sentia que eu não parecia com aqueles lugares e que não pertencia àqueles espaços. Eu sempre me cobrei muito, para estudar mais, saber me colocar mais, fazer mais para ser vista e legitimada. Com o passar do tempo, acho que a idade foi me trazendo a artesania. Quando a gente chega no movimento social, quer ser heroína, aguentar tudo, bancar todas as brigas e enfrentar todas as pautas. Fui entendendo e construindo aos poucos, até para zelar pela minha saúde mental. Hoje, eu não aceito mais quando cobram uma força que eu não tenho. Essa ideia de força da mulher negra é racista. Eu não quero carregar comigo. Eu quero, mereço e preciso de ajuda. Por isso, não ando só. Eu gosto dessa palavra ‘artesania’ porque foi descobrindo o que fazia ou não sentido para mim que eu fui construindo a Naira que é ouvidora de hoje. A Naira de hoje é extremamente metódica, mas também é efusiva. Ela é resposta de várias observações, rejeições, mas também de acolhimento.

Ascom: Quais movimentos e organizações da sociedade civil são importantes na construção da sua trajetória política?

NG: O primeiro movimento é o meu núcleo familiar. A família Gomes é um movimento massa,  porque eu tenho uma bisavó que sentava na porta de casa e contava que foi escravizada. Minha bisa – mulher preta retinta, mastigava fumo de corda em Cachoeira – morreu com 102 anos, eu era pequena. Infelizmente não tive tempo para conversar mais com ela, entender o que viveu. A escravidão está muito próxima da gente e, no meu caso, há duas gerações. Meu pai é um homem que veio do Recôncavo, abriu uma barbearia aqui em Salvador e criou dois filhos estudando na Ufba. Todas as minhas tias fizeram graduação após os 40, mas fizeram o percurso. Então, minha primeira formação de movimento social foi a família Gomes.

Depois, vem a Marcha! A Marcha e a complexidade sobre a qual ela trata não é uma performance pública, não é sobre a plástica dos corpos, é sobre quem você é por dentro! O racismo lhe desumaniza, ele faz isso muito bem com você…  vai retirando todas as possibilidades positivas dos nossos entendimentos sobre nós mesmos. Então, a Marcha sempre teve a intenção de incidir da pele para dentro! E, quando você refaz esse entendimento, é a grande revolução. É no espelho que eu passo a ver um reflexo de saúde… saúde mental e de autoestima.

Ascom: O quão importante é a sua ocupação em um espaço institucional como a Defensoria?

NG: Recentemente, cheguei no Centro Cultural de Alagados para uma breve fala num evento. A juventude que estava presente ficou em polvorosa. “Chegou a ouvidora da Defensoria!”. A juventude negra reconhece essa estética – negligenciada, silenciada e estigmatizada – como potência na nossa ocupação coletiva na Ouvidoria. Eu peguei o microfone e conversei com eles, e, como era um sarau, e eu não queria destoar, declamei uma poesia que fala que o nosso cabelo é de Deus. Tanto, que ele está apontado para o alto.

É importante entender que minha presença como ouvidora é representação. Um cargo onde uma mulher negra tem a possibilidade de gerência, de direção, de articular estratégias. Outro exemplo disso foi a live que fiz com um coletivo chamado “Afropatis”. Primeiro, eu adorei o nome, afinal de contas, o racismo coloca a gente em um lugar tão desumanizado, como se não tivéssemos o direito ao ócio e a coisas simples e leves. Todas ali são chefes e arrimo de família, mas que tem o direito ao bem estar. Negar esse direito é também corroborar com a desumanização do corpo da mulher negra. Ali, foi evidenciado novamente a importância de eu estar como ouvidora, pois elas sentiam que as preocupações delas também podiam ser as minhas.

Também contribui em uma aula sobre feminismo negro e sobre empoderamento, em que as mulheres estavam revoltadas, se sentindo invisibilizadas. Estar nesses espaços e ter o corpo e a estética igual a elas me aproxima e gera um esperançar de um futuro melhor para todas nós. Existe abertura, empatia, identificação e isso me possibilita trazer para a luz as pautas que estão ali silenciadas pelo sistema. E isso é fundamental para inspirar talentos.

Ascom: Como ouvidora-geral, quais as principais pautas que você pretende se debruçar na sua gestão?

NG: A nossa gestão vai ter uma centralidade com a juventude negra. A gente já tinha essa preocupação, a partir da Marcha do Empoderamento Crespo. Nosso público é grande parte de jovens negros(as), periféricos(as). Nós sempre trabalhamos com formação política nas escolas, gosto de estar junto, de perceber que aquelas meninas e meninos estão melhores após a nossa passagem, depois de ver que é possível ter um futuro bom, ter uma profissão, ser e se ver bonita, ser reconhecida pelo seu potencial. Ter essa capilaridade nos torna mais potentes para consolidar esse plano de gestão, que é de aproximar [a Defensoria da juventude negra].

Vamos lutar por uma infância e uma juventude sem racismo e para promover nas unidades educacionais a efetivação da lei que viabiliza o atendimento psicológico. A Ouvidoria não só escuta, ela incide! É assim que essa gestão entende este lugar, afinal a Ouvidoria aproxima a Defensoria do povo! A questão da saúde mental nas escolas traz a identidade como aspecto fundamental para adoecimento dos(as) jovens. E nós vamos incidir sobre as temáticas relacionadas a estética, extermínio, educação, empoderamento, saúde mental, segurança pública. Provocaremos uma agenda por políticas culturais nos territórios negros que enfrentam o estigma de guerra às drogas, entre outros.

Eu já fui uma mulher agredida por um ex-companheiro e transformei meu luto em luta. Isso só foi possível junto das minhas pares, que me apoiaram. E agora, como ouvidora, quero incidir com projetos e ferramentas para a defesa das mulheres em situação de violência. Dentro deste contexto, nós temos uma grande tarefa, uma delas é fazer a luta pela implantação da Deam (Delegacia Especializada de atendimento à Mulher) da região metropolitana de salvador, situada no município de Lauro de Freitas, região onde as mulheres são massacradas pela violência e pelo feminicídio. Nossa luta será pelo fortalecimento da rede de apoio e proteção às mulheres em toda Bahia.

Outra pauta que também queremos dar destaque nesse primeiro momento é a do racismo religioso. Ter o direito de professar a sua fé, de ter o seu sagrado respeitado é para todas as pessoas. Negar a religião e o direito ao culto é negar a humanidade, é negar o direito de ser inteiro (a). Para além dessas pautas chave, a nossa missão na Ouvidoria é lutar ao lado da população mais vulnerabilizada.

Ascom: Qual recado você deixa para a sociedade civil e os grupos organizados?

NG: Nós somos parceiros (as)! A Ouvidoria está de portas abertas para receber todas as demandas, para receber as pessoas, para tratar com todos (as) com cuidado, acolhimento e afeto. Um lugar de gente que gosta de gente, acima de qualquer coisa.  É o lugar onde todas as dores, todas as pautas e questões serão acolhidas e encaminhadas. Isso é uma coisa fundamental para um movimento social e para nós.

Para a Defensoria Pública,  digo que também somos parceiras! Eu entendo a instituição como uma comunidade que tem várias engrenagens. Nós somos uma das que precisa rodar bem para que tudo gire também. Estamos empenhadas no processo de gestão colaborativa, estou me reunindo com todas as áreas da Defensoria para construirmos uma gestão com melhorias, revolucionando as práticas e promovendo o bem viver. Esperem a luta da gente na defesa da população e da instituição!