COMUNICAÇÃO

Manuel Faustino, líder da Revolta dos Búzios, é absolvido em julgamento com direito de defesa assegurado pela Defensoria

29/11/2019 9:03 | Por Júlio Reis - DRT/BA 3352 | Fotos: Humberto Filho

Simbólico e histórico julgamento foi marcado por reflexões que transitaram entre o passado e a realidade presente

Depois de 220 anos, ao ter seu direito de plena defesa assegurado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA, Manuel Faustino e os demais líderes negros da Revolta dos Búzios foram absolvidos pelo movimento de libertação que lideraram. A revolta independentista do Brasil ocorreu no ano de 1798, quando o país ainda era uma colônia portuguesa, e foi marcada acima de tudo por seu caráter antiescravagista, republicanista e emancipacionista.

Este simbólico e histórico julgamento ocorreu na manhã desta quinta-feira, 28, no teatro da Universidade do Estado da Bahia – UNEB em Salvador. A iniciativa faz parte do projeto da DPE-BA “Júri Simulado – O Direito na História”, que busca colaborar na construção pedagógica de compreensão da realidade ao trazer à memória episódios que estruturaram o racismo e a invisibilidade de tradições e lutas populares.

O resultado pela absolvição se deu após a contagem de quatro votos pela inocência e nenhum pela culpa entre sete votos possíveis. O conselho do júri foi composto por sorteio e seleção entre os espectadores presentes para acompanhar o evento. Cumprindo o papel de juiz neste tribunal, o defensor público Danilo Rodrigues leu ao final sua sentença que emocionou muitos dos presentes.

“Já que o outro é indispensável a nossa existência, descobrimos aqui que a nossa liberdade depende inteiramente da liberdade dos demais e vice-versa. A revolta não foi um momento desatinado, uma rebeldia sem causa, mas uma consequência das situações de injustiça vivenciadas nas realidades mais concretas e sutis. A revolta surgiu da própria realidade opressora que ela desejava modificar guiada pela ideia eterna, universal e transcendente de justiça social e racial. Os revoltados devem ser considerados autênticos heróis”, declarou Danilo Rodrigues.

O julgamento
Durante o julgamento, Manuel Faustino – interpretado pelo ator Cristóvão Silva – ao ser inquirido aproveitou para comentar que a escravidão de ontem, contra a qual lutou para afirmar a liberdade dos seres humanos que não deveriam ser tratados como “animais possuídos por senhores de escravos”, prossegue sobre a forma de racismo institucional e falta de oportunidades.

“O dinheiro que é gasto na cidade de Salvador é gasto para quem já tem uma boa condição de vida: racismo institucional. As pessoas que morrem em deslizamentos [de encostas] foram das favelas, foram dos mocambos: racismo institucional. A maior parte da riqueza dos ricos deste país foi conquistada através de milhões de trabalhadores escravos, é preciso fazer justiça! A Justiça brasileira e baiana nos deve respeito!”, apontou Cristóvão Silva.

A acusação da corte portuguesa no Brasil, que foi desempenhada pela defensora pública Diana Furtado, buscou investir seus argumentos numa linha punitivista em sintonia com o difuso discurso atual de que “bandidos” merecem ser tratados com inflexibilidade. Se dirigindo ao conselho do júri, ela pediu a condenação não de um “mártir”, mas de um criminoso.

“Chega de impunidade, chega deste discurso comunista, comunismo nunca deu certo em lugar nenhum do mundo. Chega de insegurança e chacota com a justiça. O sentimento de impunidade é grande na nossa sociedade. O que eles chamavam de revolução, prefiro chamar de terrorismo. Se os jurados estiveram pensando em perdoar Manuel Faustino pensem nas consequências de perdoar os outros 800 mil presos, criminosos que temos nas nossas unidades prisionais. É isso que se pretende? Vamos colocar todo mundo na rua? Perdoados? Perdão cabe a Deus, aqui é a Justiça dos homens”, discursou Diana Furtado.


Já a defesa, desempenhada pela defensora pública Vanessa Nunes, tratou da desigualdade nas punições entre brancos e negros nas sentenças e promoveu uma aguerrida guarda do direito à liberdade e de luta pela transformação social.


“Eu pergunto aos jurados por que Cipriano Barato [homem branco, personagem histórico envolvido em diversas lutas independentistas] com toda sua atividade revolucionária, e que também participou desta revolta, foi condenado apenas um ano e quatro meses de prisão enquanto Manuel Faustino foi condenado a morte? Esta manhã é destinada a fazer justiça. Os líderes da Revolta dos Búzios foram punidos não porque andassem armados e sim porque circulavam com papeis, ideais de mudança”, declarou Vanessa Nunes antes do júri ser chamado a entregar seus votos.


Papel da Defensoria
A plateia do evento foi composta principalmente por estudantes secundaristas do Colégio Estadual Otávio Mangabeira e alunos do curso de Direito da UNEB. Um dos idealizadores do projeto “Júri Simulado”, o defensor público geral, Rafson Ximenes, comentou a edição do projeto abordando um de seus objetivos.

“Um dos objetivos deste projeto é mostrar para todos, especialmente vocês mais jovens, estudantes, que a Bahia tem uma história muito rica e uma história que é muito próxima da realidade de vocês, com personagens e heróis que são muito próximos de vocês, que parecem com vocês, que tem a cor da pele parecida com a de vocês, que vem dos bairros que vocês vivem, que passaram dificuldades como vocês, pais e avós passaram e que superaram isso. Mas como a história é contada pelos ‘vencedores’, normalmente os heróis populares não tem direito de contar a sua versão”, afirmou Rafson Ximenes.

“Gostei bastante. Mostrou um pouco de como funciona um Tribunal do Júri, para quem não tem noção e faz a gente refletir sobre a deficiência do Direito ao longo da história. Como certos fatores, nesse caso racial, influenciam em diversos julgamentos, além de dar a oportunidade de resgatar a história dessas pessoas que sofreram estas injustiças e não tiveram nem como se defender. Direito de defesa que é o que a Defensoria proporciona aos que não têm condições”, comentou Mariana Chaves, estudante de Direito da UNEB.

Palestra
Ao final do “Júri Simulado”, a historiógrafa do Arquivo Público do Estado e professora aposentada de História da Educação da Universidade Federal da Bahia, Antonietta D’Aguiar Nunes, proferiu palestra sobre a Revolta dos Búzios. Ela fez um relato do contexto histórico da Revolta, assim como detalhes da composição dos que participaram do movimento, entre outros aspectos, concluindo que nossas “classes ditas subalternas urbanas lutaram continuamente pela melhoria de suas condições de vida e trabalho. Nosso povo sempre foi combativo”.

Revolta dos Búzios
Em 12 de agosto de 1798, as ruas da cidade de Salvador amanheceram cheias de boletins e panfletos confeccionados e distribuídos por Luís Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas do Amorim Torres, Manuel Faustino dos Santos Lira e João de Deus do Nascimento. Eles eram os líderes do movimento conhecido como a Revolta dos Búzios. Inspirados nas ideias da revolução francesa e desejos de igualdade, fraternidade e liberdade e conseguiram unir diversos setores da sociedade baiana que sofriam com o peso da dominação do governo português.

Convocando a população para uma ‘revolução’ que implantaria a “República Bahiense”, eles conclamavam a população a se rebelar contra o domínio de Portugal. Em seu manifesto estava escrito: “Animai-vos, povo Bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que seremos todos irmãos, o tempo em que seremos todos iguais”.

Os participantes da Revolta idealizavam um projeto marcado por uma avançada pauta política na luta por descolonização e democratização da Bahia e do Brasil. Os eixos principais de demanda eram não apenas a independência como a proclamação da república, autonomia regional, o fim da escravidão e a promoção da igualdade racial.

A Revolta dos Búzios, no entanto, acabou sufocada e seus líderes duramente perseguidos e castigados pela ameaça que representavam ao inspirar a luta contra o poder colonial português. Luís Gonzaga, Lucas Dantas, Manuel Faustino e João de Deus acabaram condenados ao enforcamento no dia 8 de novembro de 1799 na área onde hoje se encontra a praça da Piedade em Salvador.