COMUNICAÇÃO

Formação de Defensoras Populares debate raça, gênero e classe no Conjunto Penal Feminino, em Salvador

27/10/2023 14:00 | Por Mirela Portugal DRT 6967/BA

A palestra faz parte da programação do curso de defensoras populares, que ao longo de 10 aulas investe na formação transversal das mulheres; é a primeira edição do curso tendo como público-alvo mulheres encarceradas na Bahia

Na última quinta-feira (26), o livro “Irmãs do Inhame: Mulheres Negras e Autorrecuperação”, da escritora e professora estadunidense bell hooks, entrou no Conjunto Penal Feminino de Salvador pelas mãos de Sirlene Assis, ex ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA). 

A obra, focada no fortalecimento e nutrição das relações afetivas entre mulheres negras, permeou o conteúdo da aula ministrada por Sirlene Assis com a temática “Raça, Gênero e Classe” no projeto desenvolvido pela Esdep, Defensoras Populares, que em 2023 ocorre pela primeira vez dentro da unidade prisional.

Autoestima, interseccionalidade, pertencimento, padrões de beleza, a simbologia contida nos cabelos, planos para o futuro e solidão foram alguns dos temas debatidos no curso. Ciente do poder curativo da palavra, boa parte da aula foi no formato de roda de conversa, com o compartilhamento de visões e histórias de vida das mulheres privadas de liberdade ali presentes.

Taís*, de 25 anos, comemorou o acontecimento do círculo de mulheres: “Na escola interna a gente não pode conversar, e o atendimento psicológico é individual. Falar sobre isso, umas com as outras, é só nesse curso”, relata. O encontro abre uma janela para novas vivências do lado de dentro do cárcere. “O sistema dificulta que a gente queira sair daqui como pessoas melhores”, compartilha.

Ao falar de laços afetivos, Vitória*, de 39 anos, aproveitou a oportunidade para relatar dificuldades nas visitas da família à unidade. “O sistema não auxilia, são muitas burocracias. Primeiro foi problema de vacina, documentação, depois foi o email que foi errado, depois na data tal não pode… Não tinha uma maneira de simplificar ou facilitar? A questão é a presença do familiar, daquele apoio que a gente precisa para passar pelas coisas aqui dentro”, afirma.

Outro tema para a conversa foram os dias para a vida além da pena. “O que vocês querem mudar na vida de vocês?”, perguntou Sirlene Assis para cada uma. Lívia*, de 23 anos, iria se matricular na Universidade Federal da Bahia (UFBA) antes de iniciar o cumprimento da sentença, mas não conseguiu a tempo. Pensa em não voltar mais à universidade, ideia imediatamente criticada por todo o grupo. “Vocês têm o desafio de enfrentar o machismo, racismo e ressignificar sua vida para que nenhuma outra mulher precise vir para cá. Estarei em sua formatura”, anunciou a palestrante. Lívia prometeu que voltaria a pensar na ideia.

A palestra faz parte da programação do curso de defensoras populares, que ao longo de 10 aulas irá informar as mulheres encarceradas sobre direitos políticos, direitos sociais, direito de família, saúde mental, feminismo, sexualidade, espiritualidade e religião. As aulas, iniciadas em 2 de outubro, irão até 16 de novembro. Pela primeira vez, a DPE/BA oferece o curso a mulheres em privação de liberdade, no caso, internas sentenciadas do Conjunto Penal Feminino. 

Para Diana Furtado, diretora da Escola Superior da Defensoria Pública da Bahia (ESDEP), órgão responsável pelo planejamento e execução do curso,  o debate de gênero, raça e classe se impõe na circunstância do encarceramento feminino. “Compreender como a interseccionalidade nos ajuda a perceber que as diferentes formas de opressão não são isoladas, mas se interconectam e se reforçam mutuamente. A partir de agora será possível para essas mulheres identificar isso em seu dia a dia”, aponta.

As temáticas são fundamentais no contexto dos outros eixos pedagógicos do curso, observa Sirlene Assis, ex-Ouvidora Geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) e expositora da aula. “Basta elas entenderem a história delas, se reconhecerem nesse processo, nesse Estado que foi construído com base no racismo estrutural, da opressão de classe e de gênero, como elas foram cooptadas por esse sistema, e como, ainda, o sistema prisional é esse navio negreiro, onde as mulheres são as maiores vítimas dessa sociedade, com violações de direitos humanos dentro dessa estrutura. Como elas mesmas disseram: estão em privação de liberdade, não da dignidade”, enfatiza.

Nas palavras de bell hooks em “Irmãs do Inhame: Mulheres Negras e Autorrecuperação”, as mulheres negras, diariamente agredidas pelas estruturas institucionalizadas de dominação, têm no bem estar psicológico uma importante arena de libertação e luta. O próximo encontro será na próxima segunda-feira (30), com o tema espiritualidade, com representantes de diversas religiões.  

*Os nomes utilizados são fictícios.