COMUNICAÇÃO

VOZES POR RUA – Das ruas à coordenação nacional do movimento que luta pela garantia de direitos da população em situação de rua

06/10/2020 10:37 | Por Tunísia Cores - DRT/BA 5496

Coordenadora nacional do Movimento População de Rua e Região Nordeste - MNPR fala sobre ter vivido os dois lados - nas ruas e, atualmente, como profissional que defende os direitos dessa população

“Fique em casa, se isole, lave as mãos” – Essas são algumas das principais recomendações dadas pelos órgãos de saúde e vigilância sanitária durante o período de pandemia e Sueli Oliveira, coordenadora nacional do Movimento População de Rua e Região Nordeste, destaca que tais orientações demostram o quanto as pessoas em situação de rua não têm acesso a direitos básicos e estão ainda mais expostas.

Como coordenadora nacional e representante da região nordeste, Sueli Oliveira é responsável por buscar lideranças e realizar as articulações necessárias para dar força às pautas das pessoas em situação de rua. Por isso, destaca que o Movimento está presente em 19 estados brasileiros, dos quais 11 contêm coordenações nacionais: Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, além do Distrito Federal

Entrevistada desta edição da série Vozes Pop Rua, Sueli Oliveira relembra que as pessoas em situação de rua estão ainda mais vulneráveis à Covid-19 do que a população em geral e traz questionamentos sobre a não contabilização do número de mortos e contaminados pela doença. O Brasil, atualmente, soma mais de 220 mil pessoas em situação de rua, sendo oito mil apenas em Salvador. Os dados são, respectivamente, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Censo SUAS.

Sueli Oliveira, coordenadora nacional do Movimento População de Rua e Região Nordeste

Você já teve vivência como pessoa em situação de rua. O que provocou isso?

Sim, eu estive em situação de rua provocada pelo rompimento de um vínculo familiar. Após a perda dos meus avós, eu precisei vir para Salvador estudar e trabalhar, mas os dias iam se passando e eu não conseguia.  Eu estava em depressão, queria a minha independência, pois minha mãe lavava roupas para sobreviver e não tinha condições de me manter. Eu me sentia impotente, um zero à esquerda. Achava também que estava atrapalhando aquele ambiente familiar, que era formado ainda pelos meus dois irmãos e padrasto. Me sentia um peixe fora d’água. A cada dia, ia me isolando mais e mais.

Nessas idas e vindas à procura de trabalho que me permitisse estudar, senti muitas frustrações por não conseguir. Fui ficando cada vez mais nas ruas, até que um dia eu não voltei mais. Não é que eu estava melhor na rua, é que, na rua, eu não estaria incomodando minha família, sendo mais uma boca pra comer, etc.

 

Por quanto tempo você ficou na rua e quais foram as dificuldades enfrentadas?

Essa situação de rua durou mais de seis anos. As dificuldades são todas, principalmente por ser mulher; o preconceito é muito maior. Na visão da sociedade, a mulher é sempre aquela que não quer nada, só quer vagabundagem, é prostituta, ladra. Enfim, são vários os estigmas, mas nunca se perguntam o porquê de ela estar nessa situação. Ninguém está na rua porque quer. É muito triste a situação de rua, pois não conseguimos comer direito, beber água, não temos acesso a banheiro ou lugar pra tomar banho e fazer a higiene pessoal; e quando a mulher está menstruada, é ainda mais complicado. Na rua, eu agia como um homem para me proteger, pois tinha medo de ser violentada. Mas o meu medo maior era da sociedade. A gente cria grupos e forma família na rua justamente para se proteger.

 

Você recebeu apoio de alguém ou de algum órgão público neste período? Que tipo de apoio encontrou?

Não no início. Na época, infelizmente apareceu na minha vida uma assistente social que achava que sabia o que era melhor para as pessoas em situação de rua. Já vinha com sua pasta, com perguntas que não me contemplavam, era tudo muito técnico. Ela não me ouvia, acreditava que já sabia o que eu precisava. Muitas vezes, os profissionais que lidam com a população de rua acham que sabem o que é melhor para essas pessoas. Mero engano, porque cada um é único.

Cada pessoa em situação de rua tem sua demanda especifica, sua história de vida – são pessoas diferentes. Não podemos trabalhar essas pessoas igualmente, porque cada um foi parar nessa situação por motivos e razões diferentes, cada um precisa ser trabalhado dentro da sua especificidade.

O apoio de verdade que encontrei foi o Movimento População de Rua, na pessoa da nossa saudosa Maria Lúcia Santos Pereira da Silva [fundadora e ex-líder do Movimento Nacional População de Rua da Bahia, falecida em 2018, aos 51 anos].

Parte da equipe do Movimento Nacional População de Rua

Como você conseguiu sair da situação de rua?

Sou mulher negra, como muitas nesse país, que viveu em trajetória de rua e conseguiu superar essa situação. Enquanto tudo em volta me dizia que eu não iria conseguir, minha força de vontade de superar me colocou de pé. E também o fato de Maria Lúcia sempre acreditar nas pessoas. Ela nunca desistiu de ninguém, sempre disse que era possível. Essas frases, eu carrego comigo até hoje. O único apoio que tive foi o Movimento Nacional População de Rua – MNPR.

 

Hoje, você desenvolve ou faz parte de alguma iniciativa voltada para ajudar pessoas que vivenciam a mesma experiência de não ter uma moradia? Caso sim, pode contar mais sobre isso?

Hoje sou coordenadora nacional do Movimento População de Rua e Região Nordeste, com muito orgulho. Sou responsável por buscar lideranças e realizar as articulações necessárias para dar força às pautas das pessoas em situação de rua. Sou filha da escola de Maria Lúcia.

O MNPR é um movimento social e político, porém apartidário, que luta por garantia de direitos para a população em situação de rua e também pela sua inclusão social. O Movimento está presente em 19 estados brasileiros, com coordenações nacionais na Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, além do Distrito Federal.

Hoje estamos no Comitê Técnico Municipal e Estadual de Saúde para População de Rua; no Conselho Municipal de Direitos Humanos; no Fórum Pop Rua Maria Lucia; no Conselho Municipal e Estadual da Assistência Social; na Frente Parlamentar Nacional; e no Comitê Intersetorial de Acompanhante e Monitoramento da Política – CIAMP municipal e estadual, onde inclusive estamos concorrendo na eleição do CIAMP nacional.

 

Reunião do Movimento Nacional População de Rua

Quais têm sido os principais desafios enfrentados pela população de rua durante esse período de pandemia, em sua opinião?

Desafios são muitos. Muitos falam que a pandemia foi pior para as pessoas em situação de rua, mas será que sabem os motivos? A recomendação [dos órgãos de saúde e vigilância sanitária] durante a pandemia que se instou desde março de 2020 foi: fique em casa, se isole e lave as mãos.

Essas recomendações básicas mostraram que a população de rua não tem acesso aos direitos básicos: água para lavar as mãos (não temos pias públicas, nem banheiros ou bebedouros públicos); moradia para se isolar (abrigo é coletivo e não isola ninguém); renda mínima, porque com uma renda mínima garantimos todos os outros direitos; alimentação, pois os restaurantes populares são insuficientes.

Hoje são mais de 220 mil pessoas em situação de rua no país. Segundo o Censo SUAS [um processo de monitoramento do Sistema Único de Assistência Social], em Salvador há mais de 8 mil pessoas nesta situação, só que a maioria não está cadastrada no censo.

Os estudos dizem que a população em situação de rua tem entre cinco e dez vezes mais chance de adoecer por conta da Covid-19 do que a população em geral. E nós ainda não temos números de mortes pela doença, nem temos números de contaminados [dados específico sobre as pessoas em situação de rua], apesar de estamos sempre cobrando. Queremos ser vistos pelos gestores das políticas públicas.

 

Movimento Nacional População de Rua dialoga sobre atuação junto à Pop Rua durante a pandemia

No seu caso, houve algum momento particular que foi mais difícil ou desafiador? Como essa questão foi solucionada, quais apoios você encontrou?

Sim, houve, porque sou do grupo de risco da Covid-19. Eu queria estar mais presente nas ações que o Movimento vinha fazendo durante a pandemia, voltadas para o cuidado da população em situação de rua, mas não podia. Isso foi muito difícil pra mim. Meu trabalho ficou restrito às articulações virtuais, por meio do celular e outros. Gosto de estar nas ruas para ouvir as pessoas.

Fizemos diversas articulações com as secretarias municipais e do Estado para ofertar cuidado e proteção necessários a essas pessoas em situação de rua. Foram reuniões e mais reuniões com as secretarias de Saúde, Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua – CIAMPs, consultório na Rua, a rede de atendimento à pessoa em situação de rua.

Esse período de pandemia foi e está sendo difícil para todos, mas para a população em situação de rua mais ainda. E um dos nossos maiores desafios é que a Rede de Atenção a Pessoa em Situação de Rua funcione, que a intersetorialidade de fato se concretize.

 

*Fotos que ilustram a entrevista, com pessoas aglomeradas e sem máscaras, foram tiradas antes da pandemia

 

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Produção: Tunísia Cores e Jész Ipólito
Produção Gráfica: Antonio Félix
Edição e revisão: Arthur Franco e Vanda Amorim