COMUNICAÇÃO

Trabalhadores negros da primeira greve do Brasil são inocentados em Júri Simulado da Defensoria

25/11/2022 9:50 | Por Rafael Flores - DRT/BA 5159

Levante popular pacífico em 1857 questionava uso de placas nos corpos dos ganhadores e taxas abusivas

Nesta quarta-feira, 24, a Defensoria Pública do Estado da Bahia realizou a décima edição do projeto Júri Simulado – Releitura do Direito na História no auditório do Sindicato dos Bancários da Bahia, localizado na Avenida Sete de Setembro, em Salvador. Desta vez foi a julgamento a Greve Negra de 1857, recém levada a público pelo historiador João José Reis em seu livro “Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia”.

Em mais um evento da série que já julgou figuras e momentos históricos como Carlos Marighela, Cuíca de Santo Amaro e a Política de Cotas, o banco dos réus recebeu o ator Cristóvão Silva interpretando um integrante do movimento grevista dos ganhadores, a defensora pública Diana Furtado como julgadora, o defensor público Henrique Alves na defesa e na acusação o defensor público Rodrigo Rocha Meire. “O objetivo deste trabalho é refletir o papel do nosso povo na história. Antes de taxar qualquer um como condenado, a gente tem que lembrar que esse réu pode ser Zumbi, Dandara, Marighela ou mesmo os trabalhadores que se levantaram e fizeram a primeira greve de pessoas escravizadas da história da humanidade”, explica o defensor público geral e um dos criadores do projeto Rafson Ximenes. 

Os trabalhadores grevistas eram negros escravizados, libertos ou livres que faziam o transporte de todo tipo de carga na capital baiana. Os “negros de ganho” movimentavam o comércio soteropolitano no século XIX e em 1º de junho de 1857 essa classe trabalhadora, formada, por exemplo, por escravos que buscavam comprar a sua alforria, decidiu parar. Foi uma lei municipal determinando que a partir daquela data os ganhadores do sexo masculino precisariam pagar um imposto de serviço; pagar por um tipo de licença para “ganhar”; e também por uma placa de metal que deveriam colocar em seus pescoços durante o trabalho, com a numeração de matrícula – como se fosse a chapa usada em carroças.

“A gente tinha que pagar pelo diabo dessa ‘praca’, pra nos humilhar mais. Tratavam a gente como bicho, então a gente resolveu parar essa cidade. A gente simplesmente sentiu, se juntamos e realizamos um movimento em paz sem causar violência nenhuma”, foi uma das falas na voz e interpretação de Cristóvão Silva que emocionou o público presente. Tachados de desordeiros e barulhentos – em virtude das músicas que cantavam enquanto trabalhavam – e alvo de acusações por furtos e outros delitos nos comércios, também precisariam pagar a um responsável “idôneo” para ser o seu “fiador” e atestar o seu comportamento. Com o racismo escancarado na época, isso significava pagar a um branco.

“A greve negra não tinha como objetivo reclamar a ordem das coisas, mas teve relação com algo maior: a dignidade humana, que ousaram requerer para si. Estamos em um Novembro Negro, é muito forte o que a gente tá fazendo, é importante saber que a historiografia da história social da escravidão tem olhado por outro lado, que não existe uma história única. A história social tem se dedicado à história dessas pessoas, que são ditos como os perdedores, mas a gente percebe que eles lutaram e fizeram de tudo para pensar um mundo possível melhor e isso nos estimula a pensar neste mundo”, conta a professora de História Mona Lisa Nunes de Souza, responsável por contextualizar o fato histórico em uma palestra durante o evento.

Argumentos da acusação

A acusação optou por utilizar argumentos que até hoje são evocados para criminalizar movimentos sociais e pessoas negras, deixando claro as consequências da escravização, opressão e outras violências em nossa sociedade. Pediu a condenação do movimento, considerando os meios empregados e o risco que se colocou à elite branca da capital baiana. “Todas as profissões são regulamentadas, não poderia ser diferente com os ganhadores (…) O representante do movimento insurgente não falou que houve um furto de uma carga que valia 45 contos de réis, uma quantia vultosa para economia baiana, por quem? Por eles. Não foram poupados os cidadãos de bem, nem as maiores autoridades de Salvador. Esse é o nível de desordem que chegamos quando não regulamentamos, foi por isso que a Câmara de Salvador tomou algumas medidas, como colocar uma numeração, pois a cidade é movimentada e não se sabe quem está transportando as cargas. Todos nós temos direitos e deveres”, disse em seu discurso Rodrigo Rocha Meire, que ainda caracterizou o movimento como “balbúrdia”.

Argumentos da defesa

A defesa sustentou a absolvição, argumentando ser legítima a paralisação pacífica realizada pelos ganhadores e explicitando as violências às quais eram submetidos. Sua fala também fez conexões com o mundo contemporâneo ao citar, por exemplo, o youtuber Vitor Santos, que teve um vídeo viralizado suspeitando da idoneidade de um entregador de aplicativo.

“Quando eu passei a estudar os ganhadores e o que eles faziam, foi impossível não olhar no espelho e não lembrar das nossas baianas de acarajé, dos nossos ambulantes, da galera que pega cadeira e serve bebida no Porto da Barra, das pessoas que entregam comida nas nossas casas”, diz. Para ele, assim como os ganhadores, estes são trabalhadores que não têm direitos e que “são taxadas de criminosas quando se levantam, como a acusação faz”, disse Henrique Alves.

Sentença

O júri popular, sorteado na hora entre os presentes, votou pela absolvição dos acusados, o que foi seguido por Diana Furtado em sua sentença. “Após mais de 150 anos de apagamento histórico, há de se reconhecer que esse grupo de ganhadores resistiu e executou de maneira legítima e inédita a primeira greve realizada no Brasil, anterior portanto aos relatos das greves dos gráficos em 1858, ferroviários da Central do Brasil em 1886 e a greve dos caixeiros em 1891, muito anterior à regulamentação do direito à greve no Brasil e a sua inserção na Constituição Federal de 1946. É necessário restituir a esses ganhadores pelo reconhecimento da legalidade de seu movimento e de suas ações, o seu papel de agentes políticos responsáveis por terem iniciado a disputa em torno dos direitos trabalhistas no Brasil”, concluiu.

Diana também usou o seu discurso final para traçar paralelos entre os ganhadores e os trabalhadores negros que ainda são precarizados na cidade de Salvador e no Brasil. “O motor da cidade Salvador ainda são as mãos negras, não menos desvalorizadas que naquela época. Se antes ganhadores e ganhadeiras faziam o transporte de pessoas e objetos por toda cidade sem nenhuma valorização de seu trabalho, convivendo com o desejo pela elite de seu retorno à África com vistas a uma europeização e branqueamento da cidade, hoje quem dirige, transporta, serve, limpa, vende, cozinha, constrói e conserta, são as mãos negras. E que direitos são assegurados a motoristas e entregadores e quem são esses motoristas e entregadores? Quantas pessoas ainda em 2022 não podem usar o elevador social como se tivessem os brancos 165 anos depois a colocar placas de metais nos corpos de pessoas negras?”, reflete.