COMUNICAÇÃO

Rede de atenção permanente às crianças autistas começa a se constituir em Santo Antônio de Jesus após mediação da Defensoria

14/07/2022 9:25 | Por Júlio Reis - DRT/BA 3352 | Fotos: Arquivos Pessoais

Realizando escuta qualificada de mães e articulações institucionais, DPE/BA alcança compromissos firmados da administração pública municipal com estruturação de serviços contínuos para crianças com o transtorno.

“Por que só os autistas filhos de pessoas ricas, ou com boa estabilidade financeira, vão ter acesso a terapias? Por que só as crianças autistas de quem tem dinheiro para pagar um plano de saúde poderão se desenvolver melhor? Meu filho vai ficar contando apenas com oração? O filho do apresentador Marcos Mion tem nível grave de autismo e a probabilidade era de que aquele adolescente não poderia falar, nem conseguir comer ou vestir uma roupa. Mas ele anda, ele brinca, ele consegue conversar, e como ele conseguiu? Foi só por oração? Não, foi por conta de terapias que custam caro, terapias que não estão ao nosso alcance”, questiona e discorre, com voz embargada, Natália dos Santos, 34, desempregada e mãe de Camilo dos Santos, criança com transtorno do espectro autista.

Natália mora em Santo Antônio de Jesus, município do recôncavo baiano com cerca de 105 mil habitantes, e descobriu que seu filho mais novo sofria com o distúrbio do neurodesenvolvimento quando ele tinha dois anos. Camilo agora está para completar quatro. Na ocasião, o próprio diagnóstico que identificou a condição de Camilo como autista foi realizado por um médico que atuava em outro município do recôncavo.

“Levamos Camilo a São Félix porque não havia neuropediatra na rede pública aqui e as consultas privadas são muito caras. Além de diagnosticar Camilo com autismo, ele orientou sobre a necessidade de terapias ocupacionais, com fonoaudiólogo e com nutricionista especialista no distúrbio. Era um mundo novo, eu nem sabia que existia o autismo. O munícipio não oferecia nada, nenhum tipo de terapia. Recebia apenas fraldas, que chegaram a ser cortadas por um tempo. Foi então quando resolvi procurar a Defensoria Pública para saber quais eram os meus direitos e o do meu filho”, relata Natália dos Santos.

Ao procurar a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA), a batalha de Natália para obter acesso às terapias essenciais ao desenvolvimento de seu filho iniciou um novo capítulo na luta pelos cuidados às crianças com autismo em Santo Antônio de Jesus. Após diálogos e articulações, a DPE/BA obteve junto aos secretários(as) municipais de Educação, Saúde, Assistência Social e Esporte e Lazer o compromisso com um rol de responsabilidades que deverão ser o pontapé na organização de uma rede pública de atenção às crianças com autismo na cidade. As obrigações mais imediatas do município ficaram estabelecidas em Termo de Ajustamento de Conduta [ver lista abaixo] celebrado no dia 21 de junho.

Antes mesmo de ser firmado, algumas das responsabilidades assumidas pela administração pública já vinham sendo implementadas. Ainda no fim de maio, uma neuropediatra foi contratada e passou a atender numa das duas policlínicas municipais. Além disso, a partir do início de junho deste ano, depois que foram disponibilizados mais acompanhantes especializados (cuidadores) para atuar nas salas de aula assistindo crianças e adolescentes autistas ou com deficiências, Camilo pôde começar a frequentar a escola.

“Foi a primeira vez que a gente se desgrudou desde que ele nasceu. Ele ficou muito agitado. Estou sempre conversando com a cuidadora dele por mensagens. Meu filho não tinha direito a escola e se não fosse a Defensoria até hoje ele seguiria sem estudar. A mesma coisa vale para o filho de uma vizinha que também tem autismo. O papel da Defensoria, não só para mim, mas para outras mães, foi de inclusão, a gente estava excluída antes da Defensoria entrar nas nossas vidas”, comenta Natália dos Santos.

De acordo com a defensora pública Paula Jucá Faskomy, que está à frente da questão com apoio da servidora Nádila Couto e da assistente social Arlete Lobo, após ouvir o caso de Natália dos Santos, a Defensoria passou também a escutar outras mães. Por meio de seu Núcleo Psicossocial, foram realizadas então conversas internas para avaliar e endereçar as principais demandas no sentido da estruturação da rede de atenção e cuidado às crianças autistas.

“Sempre em contato com estas mães, passamos a pensar em possíveis soluções para as questões apresentadas, que se concentravam em matérias de saúde, educação, assistência social e lazer. Fomos avançando as pautas em conversas, reuniões e ofícios com as secretarias correspondentes e, mantendo um contato contínuo com seus representantes, fomos costurando este termo. É um instrumento que reúne diversos compromissos do ente municipal, a curto e médio prazo, porque entendemos as necessidades destas famílias como um todo permanente”, explicou Faskomy.

Terapias e Desenvolvimento

Transtorno que afeta o desenvolvimento neurológico, o autismo vês seus principais impactos nas capacidades de locomoção, comunicação, interação social e comportamento. Daí porque a necessidade de um diagnóstico precoce e de um tratamento que forneça desde cedo estímulos contínuos.

Mãe de Arthur Ravi, criança com autismo com nove anos, a advogada Ana Célia relata que embora tenham sido identificados traços autistas em seu filho aos 4 anos de idade, o diagnóstico só veio três anos depois. “Ele sofre com problemas sensoriais, usa abafadores de ruídos por conta de grande sensibilidade auditiva e tem intolerância a glúten e lactose. Ainda assim, um cuidador geral na sala de aula é suficiente para lidar com as necessidades dele, já que ele é bastante funcional”, explica.

Assim como Natália dos Santos, Ana Célia é integrante do Projeto Desenvolver, uma espécie de associação que reúne cerca de 130 famílias com filhos(as) autistas em Santo Antônio de Jesus. Por meio de esforços e colaborações dos membros do Projeto, além de iniciativas para arrecadar fundos, a iniciativa oferece, entre outros, os serviços de uma psicóloga e duas atendentes terapêuticas às crianças autistas na cidade.

Uma das voluntárias do projeto é a fisioterapeuta neuropediátrica Nara Cardeal que atua buscando ajustar os movimentos das crianças autistas. “Movimentos do dia do nosso corpo como ficar em pé, sentar, ajoelhar, correr, tendem a ser objetos de dificuldades para estas crianças”, diz.

Para ela, o acolhimento que Projeto realiza traz grande alívio para as mães, ajudando a vencer temores quanto à exposição dos filhos e, assim, socializando as crianças com ambientes e estímulos diferentes, o que é fundamental para o melhor desenvolvimento.

“O autismo pode ser identificado já a partir do primeiro ano de vida e quando a gente não consegue tratar esta criança logo cedo, isso traz grandes repercussões para a vida dela. Por isso a necessidade de uma rede multidisciplinar que passa pelo diagnóstico de neuropediatra, uma fisioterapeuta neuropediátrica para regularizar os movimentos da criança, uma fonoaudióloga para estimular a fala, uma psicóloga para para estudar o comportamento da criança e orientar os pais para que estimulem respostas favoráveis, terapeutas ocupacionais que desenvolvam intervenções necessárias para recuperar as funcionalidades, entre outras especialidades”, explica Nara Cardeal.

A indispensabilidade das terapias para o melhor tratamento e desenvolvimento da criança também é salientada por Ana Célia. “Não adianta hoje ter um diagnóstico e não ter as terapias, porque terapia é vida. Que adianta o diagnóstico, quando você não tem onde fazer uma psicoterapia? Quando não se tem as terapias ocupacionais oferecidas? Sem as terapias, as crianças ficam extremamente desreguladas, ocorrem acidentes, é muito ruim mesmo”, comenta.

Uma das esperanças que o TAC firmado pelos órgãos da administração municipal com a DPE/BA gera é que, em um futuro próximo, Santo Antônio de Jesus venha a possuir um Centro Multifuncional de Atendimento para Pessoas com Autismo e Deficiências. No Centro se reuniriam as especialidades e atividades necessárias para o desenvolvimento de um trabalho interligado atendendo não apenas crianças e adolescentes, como também adultos.

“Eu sigo nas redes sociais uma mãe de Santa Catarina com um filho autista que vive em um município que montou um Centro onde todas as terapias são oferecidas gratuitamente. Tudo num lugar só. Então a gente sabe que é possível”, diz Natália dos Santos.

A defensora pública Paula Faskomy pontua que, na Bahia, cidades com menos habitantes e menor infraestrutura em saúde, a exemplo de Cruz das Almas na Bahia, já dispõem de um Centro como este. “Levamos isso para o município e a gestão nos respondeu apontando que já há um projeto em curso em vias de encaminhamento para aprovação e execução. Acreditamos que esta é uma meta e ponto comum entre todos”, comentou.

Ajustamento de Conduta

Firmado no dia 21 de junho, o Termo de Ajustamento de Conduta estabelece os seguintes compromissos por parte da administração pública de Santo Antônio de Jesus:

> Contratação e disponibilização de acompanhantes especializados (cuidadores) para atuar de forma individualizada em todas as salas de aula que tenham alunos com autismo ou deficiência. A Secretaria de Educação dever garantir a disponibilização do cuidador coletivo (por sala de aula com alunos autistas e/ou com deficiência) e do cuidador individual no caso de crianças com indicação médica para cuidados exclusivos.

> Contratação imediata de uma neuropediatra com marcação de consultas, inicialmente, atrelada à demanda reprimida das crianças e adolescentes cadastradas no Projeto Desenvolver e, posteriormente, via Unidades de Saúde da Família (USF).

> Em seu novo processo de licitação, a ser iniciado neste mês, a Secretaria de Saúde incluirá contratações de terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, neuropediatras, dentre outras especialidades multidisciplinares, bem como deverá fornecer informações à DPE/BA acerca do andamento do processo licitatório.

> Em prazo de uma semana [após a celebração o TAC], a Secretaria de Esportes e Lazer deverá disponibilizar a piscina do CAPS Infantil e/ou da Policlínica Regional para realização de atividades aquáticas (natação), bem como profissionais que já fazem parte do quadro municipal para oferta de aulas/práticas esportivas às crianças e adolescentes com autismo e deficiências, além de suas respectivas famílias. No mesmo intervalo de tempo a Secretaria de Esportes e Lazer deve solicitar ao prefeito a contratação de mais profissionais para ofertas de aulas e esportes às crianças com deficiência. Também ficou acertado a necessidade de ajuste de convênio com o Espaço Cuidar e/ou outros espaços privados já existentes na cidade para oferta das práticas esportivas a este público.

> Também ficou firmado que as demandas de passe livre relativas à crianças com autismo e deficiências serão tratadas em fluxo prioritário. Os casos onde os solicitantes já possuam laudo médico devem ser encaminhadas para análise de forma imediata.

> O descumprimento das cláusulas previstas do TAC faculta à Defensoria Pública a imediata execução do acordado e estipula multa diária pelo descumprimento da obrigação de fazer, no valor de R$ 1.000,00. Se aplicadas, as multas serão revertidas para o Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, administrado pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente de Santo Antônio de Jesus.