COMUNICAÇÃO

Infância sem racismo: campanha da Ação Cidadã da Defensoria lançou livro de minicontos e discutiu a identidade positiva para crianças negras

26/03/2021 14:46 | Por Tunísia Cores - DRT/BA 5496

Realizado nesta quinta-feira, 25, lançamento incluiu ainda a divulgação de produtos audiovisuais

Como discutir racismo e negritude junto a crianças negras? De que forma a família e a escola podem contribuir para a construção de uma identidade racial positiva desde a infância? Orientada por estes questionamentos, a Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA lançou a Ação Cidadã Infância sem Racismo, nesta quinta-feira, 25, em evento transmitido ao vivo pelos canais institucionais no Youtube, Facebook e Twitter. A iniciativa foi desenvolvida com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef e da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – Faced/UFBA.

A campanha da Ação Cidadã Infância sem Racismo adotou o slogan “Vamos conversar, aprender e transformar” e inclui o lançamento de um livro de minicontos, vídeos, spots para rádios, além de divulgação em outdoor e busdoor. A idealização partiu da Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, por meio das defensoras públicas Gisele Aguiar, coordenadora, e Laíssa Rocha; e da Especializada de Direitos Humanos, por meio da defensora pública e coordenadora Eva Rodrigues.

Mulher negra, Laíssa Rocha é mãe de duas crianças negras: João Gabriel Rocha, 3 anos, e Ana Beatriz Rocha, 6 anos, a qual inclusive inspirou a personagem principal do livro de minicontos “Nossa querida Bia: enfrentamento ao racismo desde a infância”, lançado pela Defensoria da Bahia nesta quinta-feira. A defensora pública explica que a ação cidadã surgiu a partir das experiências da DPE/BA nos atendimentos aos casos de racismo contra crianças e adolescentes. Suas vivências pessoais também foram fundamentais para a concepção do projeto.

Clique na imagem para acessar o conteúdo do livro de minicontos “Nossa querida Bia”

“A campanha visa romper o silenciamento existente sobre esse tema na infância, pensar na educação para as relações raciais e combater ao racismo. A Defensoria Pública não quer chegar quando a prática racista já aconteceu, ela quer chegar antes, promovendo uma educação em direitos para transformar essa realidade que pode ser muito cruel, sobretudo para crianças negras”, explicou.

Principal produto da Ação Cidadã Infância sem Racismo, o livro “Nossa querida Bia – enfrentamento ao racismo desde a infância” traz quatro minicontos que abordam a vida da personagem principal, uma menina negra que reconhece positivamente a sua identidade racial. As histórias abordam cabelos crespos, racismo religioso, diversidade e representatividade para dialogar com o público infantil e também trazer orientações para os adultos.

“Bia é uma criança consciente da sua identidade racial, da sua ancestralidade, com a autoestima elevada e consciente da sua negritude. É uma inspiração para crianças negras e seus familiares, mas inspira sobretudo a construção de uma sociedade que busca a equidade racial”, complementou a defensora pública.

Chefe do escritório da Unicef em Salvador, Helena Oliveira comentou, entre outras questões, que o Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, que a Constituição Federal de 1988 prevê a promoção do bem de todos, a igualdade perante a lei, a prática do racismo como crime inafiançável e os papeis a serem assumidos pela família, pelo Estado e pela sociedade para assegurar direitos a crianças, jovens e adolescentes.

“Essa campanha diz muito sobre a nossa potência e a nossa luta pelos direitos humanos em direção a crianças e adolescentes e, sobretudo a crianças negras ou não-brancas. O racismo trata-se de um crime inafiançável, constitui uma violação de direitos que inclui danos morais e impactos difíceis de serem revertidos na vida de crianças e até mesmo na vida adulta. Aqui no Brasil, como o racismo vem incidindo no desenvolvimento de crianças e adolescentes e na limitação dos seus direitos, [essa discussão] é particularmente essencial para que possamos ter sucesso na implementação de políticas públicas”, comentou.

Professora da Faced/UFBA, Nanci Franco abordou a Lei n. 10.639/2003, que passou a incluir no currículo oficial das escolas a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” e incluir o Dia da Consciência Negra (20/11) no calendário escolar. Destacou que o papel da discussão contra o racismo cabe a toda a sociedade, mas também destacou práticas a serem adotadas no âmbito escolar para uma educação antirracista: rodas de conversas, contação de histórias com personagens negros colocados de forma positivada, oficina de trançados e penteados afro, resgate de brincadeiras afro-brasileiras, além da utilização de produtos audiovisuais que retratem positivamente pessoas e culturas negras.

Ação Cidadã Infância sem Racismo da Defensoria Pública da Bahia- penteado Torcidinho de Princesa

Clique na imagem para assistir aos produtos audiovisuais da campanha da Ação Cidadã Infância sem Racismo

Nanci também comentou que, em geral, as escolas trabalham em uma perspectiva eurocêntrica, mas o Brasil é formado por três matrizes culturais distintas: a europeia, africana e indígena, estas duas últimas, portanto, precisam ser abordadas positivamente nas instituições de educação básica desde a infância.

“A lei aponta esse viés etnocentrista, clama por uma formação mais ampla e plural, e mostra os direitos que criança e jovens têm. É preciso descolonizar saberes e práticas educativos. A implementação da lei é fundamental. Conhecer as suas raízes e a sua própria história dá mais segurança aos alunos negros, além de melhorar a autoestima. Reconstruir a história dos afro-brasileiros é fundamental no sentido de apropriá-los de um legado cultural que é apagado no discurso da escola”, afirmou.

Atriz do espetáculo Sarauzinho da Calu, a jovem Clara Cardoso, 19 anos, compartilhou as suas experiências desde criança, bem como o seu despertar para as questões raciais. Enquanto criança, relembrou de uma ‘amiga’ que enaltecia os seus cabelos lisos e, por isso, conforme conta a sua mãe, Clara passou a esconder seus cachos publicamente. Posteriormente, em outra situação, vivenciou uma situação de racismo com um terceiro, e ouviu desta mesma pessoa que praticou o ato racista, comentários sobre “não ser tão preta”.

“Eu entendi na hora que era um comentário racista, embora não fosse diretamente para me ofender. Mas eu entendi de duas formas: como se ser preta fosse ruim e essa pessoa afirmasse ser um alívio que eu ‘não fosse tão preta assim’ e outra questão é como se isso fosse me isentar de sofrer racismo algum dia”.

Clara também destacou a importância da sua família na formação da sua identidade e pontuou as suas iniciativas de enfrentamento ao racismo, por meio de manifestações presenciais antes da pandemia e do ativismo nas redes sociais. Profissionalmente, também destacou o espetáculo Sarauzinho da Calu, contemplado como melhor espetáculo infanto-juvenil pelo Prêmio Braskem de Teatro e inspirado no livro “Calu, uma menina cheia de histórias”, de autoria de Cássia Vale e Luciana Palmeira.

Mesa Institucional

A abertura da mesa institucional foi realizada pela coordenadora da Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Gisele Aguiar, a qual comentou sobre a importância de lançar esta campanha próximo ao Dia Internacional contra a Discriminação Racial, comemorado no último domingo, 21 de março. A defensora pública explicou que a chegada ao Brasil da Covid-19 levou a Defensoria a reformular a campanha, que passou a ser virtual, e também abordou os diversos casos que chegaram à DPE/BA e motivaram o lançamento da iniciativa.

Mesa institucional do lançamento da campanha da Ação Cidadã Infância sem Racismo

Mesa institucional do lançamento da campanha da Ação Cidadã Infância sem Racismo. Estão presentes na imagem, nesta ordem, a jornalista Tunísia Cores; as defensoras públicas Gisele Aguiar e Eva Rodrigues; o defensor-geral, Rafson Ximenes; e a ouvidora-geral, Sirlene Assis;

“De posse dessas histórias, sentamos e traçamos a campanha para quebrar o silêncio, dialogar, discutir sobre discriminação racial e racismo na infância e na adolescência. Nós também precisamos estimular uma educação antirracista. Como estão sendo travados nossos diálogos em casa? Nossas crianças e adolescentes ouvem tudo que nos falamos. Será que estamos criando crianças antirracistas para um futuro melhor? Precisamos enfrentar o racismo desde a infância e com isso fortalecer a autoestima de crianças negras, trazendo para a educação uma diversidade cultural do nosso país”.

Também foram destacadas na ocasião as parcerias firmadas com docentes da Faced/UFBA, a exemplo da própria Nanci Franco e também de Karine Moreira Menezes, que desenhou as ilustrações do livro de minicontos “Nossa querida Bia – enfrentamento ao racismo desde a infância”. Outros parceiros também foram lembrados, á exemplo da Secretaria Municipal de Educação e da Secretaria Municipal de Reparação Racial, ambas em Salvador.

Coordenadora da Especializada de Direitos Humanos, Eva Rodrigues comentou sobre o amadurecimento institucional e os avanços nas discussões sobre o racismo com a implementação da política de cotas no último concurso para defensoras e defensores públicos, em 2016. Trouxe referências sobre situações de racismo vivenciadas, em especial, na Bahia, além de bibliografias que analisaram os impactos do racismo, nas escolas, sobre a formação e a autoestima de crianças negras e brancas,

“Eu sei que a gente entende e propaga ideia de que todos nascemos sem preconceitos, mas a verdade é que a gente vive em uma sociedade que foi fundada e segue sendo sustentada pelo racismo estrutural cotidianamente. Se não falarmos sobre racismo desde a infância, nós seremos responsáveis por continuar propagando e perpetuando essa engrenagem. A Defensoria da Bahia faz história mais uma vez e se lança de forma pioneira, dentro do Sistema de Justiça, nesse desafio de tentar mudar essa realidade e descortinar para os baianos a possibilidade de ter um presente mais consciente e um futuro menos desigual”.

A ouvidora-geral da DPE/BA, Sirlene Assis, também ressaltou que a sociedade brasileira foi construída com base no racismo estrutural, bem como nas opressões de classe e gênero, o que reforça a importância da Ação Cidadã Infância sem Racismo.

Clique na imagem para assistir aos produtos audiovisuais da campanha da Ação Cidadã Infância sem Racismo

“O racismo começa na infância, na negação da nossa história. Isto acontece, por exemplo, nos livros infantis, que apresentam o Saci Pererê, um menino negro de uma perna só, que pinta e borda; as princesas que são sempre mulheres brancas. Como as crianças se reconhecerão positivamente como negras? O racismo começa a partir das coisas sutis, que tiram a nossa identidade”, comentou a ouvidora-geral.

O defensor-geral da Bahia, Rafson Saraiva Ximenes, destacou que a existência do racismo estrutural apresenta também o desafio de combatê-lo e isto implica assumir a responsabilidades em busca de uma sociedade livre de discriminação racial.

“Se há um problema de formação, vamos mudar e assumir a nossa responsabilidade enquanto pessoas adultas, responsáveis pela formação das crianças. Cabe a nós proporcionar uma formação antirracista aos nossos filhos, dar instrumentos para que entendam o que é racismo e também quando forem vítimas de racismo. Temos uma grande atuação por meio das especializadas aqui citadas e, com o trabalho desenvolvido, a Defensoria Publica declara que quer lutar publicamente para que nenhuma criança passe por situações de racismo”, finalizou Rafson Ximenes.