COMUNICAÇÃO

Defensoria visita comunidade cigana e sede do Comando da PM no sudoeste da Bahia para ajudar a conter violência

24/08/2021 10:01 | Por Rafael Flores - DRT/BA 5159

Visita técnica nesta terça-feira, 17, contou com defensores(as) públicos(as), Ouvidoria Cidadã e Sepromi

Poucos estudos no Brasil dão conta das reais origens do racismo contra os povos ciganos, porém o professor e pesquisador aposentado da UFPE Frans Moonen, em seu trabalho “Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil”, narra que os primeiros ciganos desembarcaram no Brasil oriundos de Portugal e não vieram voluntariamente, mas deportados daquele país. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1574 com João de Torres e sua mulher Angelina, presos apenas pelo fato de serem ciganos. Mais de quatro séculos depois, a comunidade cigana que se estabeleceu no Brasil ao longo desses anos permanece colhendo os frutos de um ‘anticiganismo’ plantado muito antes da América ser colonizada.

“Eu creio que existe uma perseguição por ser cigano mesmo, mas todos devem entender que não é porque um cigano rouba que os outros roubam. Se um morador, como você, da sua etnia, da sua raça, rouba, estupra, mata, você e sua família vão pagar por esses crimes? Não vão, então por que nós ciganos temos que pagar pelos erros dos outros?”. Este foi um dos desabafos de Carmen*, mãe de quatro filhos, durante visita da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) e sua Ouvidoria Cidadão ao bairro Felipe Achy em Itambé, onde 10 famílias ciganas vivem há cerca de 20 anos.

Uma visita técnica na região nesta terça-feira, 17, contou com o defensor público e coordenador da 2ª regional da DPE/BA, José Raimundo Campos, e a defensora pública e coordenadora do Núcleo de Integração, Cristina Ulm, a ouvidora-geral da Defensoria, Sirlene Assis, e Maíra Vida, coordenadora do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (Sepromi). A preocupação em ouvir esta comunidade se dá após uma série de relatos de violação de direitos, que envolvem violência policial e cerceamento do direito de ir e vir. 

O grupo está preocupado desde o evento em que acarretou na morte de oitos ciganos integrantes de uma mesma família na região sudoeste da Bahia. O caso teve início no dia 13 de julho, quando dois policiais militares foram mortos no Distrito de José Gonçalves, na zona rural de Vitória da Conquista. Desde então, dezenas de ciganos denunciam perseguição em cidades vizinhas, como Itambé. As abordagens violentas se concentraram no período de perseguição aos acusados de matar os policiais, no entanto existem consequências ainda no dia a dia desta população. 

“Aqui dentro de Itambé nunca sentimos esse trauma, de racismo, inclusive da polícia, todos nos respeitavam, hoje é difícil a gente até circular pela cidade com medo de nos reconhecerem como ciganos. No dia 18 de julho os policiais invadiram algumas casas com agressões físicas e verbais, no dia 20 precisamos sair um tempo de nossas casas para proteger principalmente as crianças e os adolescentes que ficaram traumatizados até hoje”, narra Carmen, que ainda relatou ter escondido e deixado de usar suas vestimentas típicas para evitar o reconhecimento. 

Para Sirlene Assis, que já havia conectado virtualmente a comunidade à Defensoria no projeto Roda de Conversa no início de agosto, estar presente na comunidade e ouvir pessoalmente os relatos é uma forma de se aproximar, além de entender melhor os conflitos. “Assim podemos fazer essa mediação dos poderes públicos estaduais e municipais na garantia de direitos da população cigana do estado da Bahia, foi um momento enriquecedor, de escuta qualitativa, como instrumento para poder mediar essa violação de direitos que está ocorrendo”, explica. 

“Nessa situação nós entendemos que seria interessante uma atuação institucional, uma vez que trata-se de uma grave violação de direitos de uma comunidade étnica que está sendo perseguida e nesse sentido ficamos bastante satisfeitos com a resposta da administração da Defensoria Pública encaminhar justamente a coordenadora do Núcleo de Integração e a ouvidora-geral para nos fortalecer neste acompanhamento”, afirma o defensor José Raimundo, que informa ainda que será elaborado um relatório em parceria com a Sepromi.

Maíra Vida, coordenadora do Centro de Referência Nelson Mandela, caracteriza a situação relatada como de ‘terror tangível’. “Essas pessoas, ainda que não estejam, no momento, sob uma ação sistemática de cerco, sofrem efeitos no que diz respeito ao modo de vida; como isso atingiu as práticas internas da comunidade e sua esfera pública de relacionamentos. Vemos em tudo isso mais uma expressão e faceta do racismo como uma manifestação  de como o estado na figura das polícias e de outras tantas instituições decide se relacionar com a sociedade”, explica.

Diálogo com a Polícia Militar

A convite do comandante do Comando de Policiamento da Região (CPR) Sudoeste, da Polícia Militar da Bahia, coronel Ivanildo da Silva, a equipe esteve na sede da corporação em Vitória da Conquista também no dia 17 de agosto, para ouvir e dialogar sobre a situação com a comunidade cigana. Também estiveram presentes o tenente-coronel Fernando Leite e o tenente-coronel Eduardo Moreira.

“Esse gesto de nos encontrar com o comando do Sudoeste faz parte do fortalecimento da rede que a Ouvidoria tem criado com as instituições públicas na perspectiva de garantir os direitos e estreitar esse relacionamento na região Sudoeste para a defesa dos direitos humanos, resguardando não só os povos ciganos mas também os servidores de segurança pública do estado. Queremos que todas as pessoas possam viver com dignidade, no direito de viver e existir”, conta Sirlene.

O coronel Ivanildo ressaltou a importância da sua participação na Roda de Conversa realizada pela Defensoria, quando pôde ouvir diretamente as angústias da comunidade cigana. “A partir dali construímos uma ponte para este assunto, fortalecendo essas instituições para atender melhor o cidadão. Esse elo é importante, para que tomemos conhecimento de fatos que desconhecíamos, para que possamos adotar aquelas medidas necessárias e para que fatos dessa natureza não voltem a ocorrer”, explica o comandante.

José Raimundo considerou positiva a agenda, principalmente pelo Comando ter dedicado um tempo à escuta das denúncias. “Eles deixaram também as portas bastante abertas justamente para que a gente encaminhe situações de violência e a tentativa da possível  identificação dos policiais militares que praticaram essa violência, para justamente autorizar abertura de inquéritos policiais, pois pelo menos a posição do comando do Sudoeste foi de que vão reprimir todo tipo de situação de violência contra as comunidades ciganas”, relata.

Quem também percebeu a abertura dos coronéis para ouvir os relatos das instituições presentes foi a coordenadora do Centro de Referência Nelson Mandela. “Vimos um aceno de genuíno interesse em exercitar uma escuta sensível do que levamos, desde a circunstância deflagradora do que nós entendemos ter sido de fato um  massacre, porque não podemos ver como natural a ocorrência de tantas mortes em um grupo relativamente pequeno de pessoas circunscrito a uma comunidade que já sofre preconceito, até as novas denuncias”, comenta Maíra Vida.

“Na oitiva percebemos muito sofrimento e discriminação com os ciganos e sentimos a necessidade de nos aproximar desses povos, que por diversos motivos a Defensoria ainda está distante e se aproximando agora para acolher suas demandas. É muito forte o que ela fala em se descaracterizar para não expor a família, sofrendo algum tipo de represália. Levamos a demanda para o comando, que foram bem recebidas e se mostraram presentes, atentos aos questionamentos do povo cigano e comprometidos em combater essas ações arbitrárias. Então, fazendo essa ponte com o Comando, tendo essa interlocução, encontramos no Coronel uma pessoa disposta a ouvir”, é como resume o dia de atividades a coordenadora do Núcleo de Integração Cristina Ulm.

*Nome fictício para preservar a identidade