COMUNICAÇÃO

Racismo e cidade estiveram em destaque em uma das mesas-redondas do seminário virtual sobre o direito à cidade promovido pela Ouvidoria da Defensoria

10/09/2020 15:50 | Por Ingrid Carmo DRT/BA 2499

Evento durou o dia inteiro e foi transmitido através das redes sociais da Instituição

A opinião dos participantes foi unânime: não dá para falar sobre cidade sem falar de racismo. E foram, justamente, os temas “Racismo e Cidade” que estiveram em pauta na primeira mesa-redonda do seminário virtual “Direito à Cidade a partir de uma política antirracista”, promovido pela Ouvidoria Cidadã da Defensoria Pública do Estado da Bahia – DPE/BA e transmitido na página e no canal da Instituição nas redes sociais Facebook e YouTube.

Mediada pelo diretor da Confederação Nacional das Associações de Moradores – Conam e doutor em Desenvolvimento Urbano e Regional, João Pereira, a mesa trouxe diversos profissionais para debater o tema, contar suas experiências e fazer suas reflexões a partir da vivência em Salvador e em outras cidades.

“Realmente, não dá para discutir o direito à cidade sem discutir o racismo estrutural que atravessa a nossa cidade e nosso país. Estamos aqui neste seminário para acolher movimentos sociais, instituições e pesquisadores e para que possamos discutir, juntos, saídas para os graves problemas que nós vivemos com a falta de direitos nas cidades”, explicou o mediador João Pereira.

Residindo na cidade baiana de Conceição do Coité, onde atua, e natural do Rio de Janeiro, o defensor público Rafael Couto foi o primeiro a falar e, de início, apresentou as atividades do Grupo de Trabalho de Igualdade Racial da DPE/BA, destacou o perfil socioeconômico do público atendido pela Defensoria durante a pandemia e sobre o tema em si fez uma referência à música “Negão”, de Chico César.

“Não se pode negar o negro no debate sobre o direito à cidade. O debate deve ser racializado. Os territórios e cidades brasileiras foram projetados a partir de uma lógica racista de subalternização do negro, as cidades nascem sob regime escravocrata, o projeto higienista segregador permanece até os dias de hoje e a estruturação urbana busca sempre excluir os indesejáveis dos espaços públicos”, lembrou.

Divisão por bairros

Já a presidente nacional da União dos Negros pela Igualdade – Unegro, Ângela Guimarães, falou da organização das cidades por bairros e o quanto essa divisão é explícita em relação a quem mora nos locais estruturados e nos distantes. De acordo com ela, o retrato das cidades brasileiras revela o “confinamento, a segregação, o controle, inclusive militar, dos territórios e o uso intensivo da violência como instrumento de controle social destas populações rotuladas como descartáveis, perigosas, indesejáveis e marginais”.

Para Ângela, a realidade de cidades como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo é de um confinamento da população negra nas áreas mais distantes e que são, justamente, áreas mais desprovidas do acesso aos direitos básicos, como condições dignas de habitação, água encanada, esgotamento sanitário, acesso ao mundo do trabalho, creches, educação em tempo integral e mobilidade urbana.

“Os bairros estruturados são, majoritariamente, ocupados por brancos. Em contrapartida, os bairros mais distantes, com maior dificuldade de acesso, de circulação na cidade e infraestrutura totalmente precária são, exatamente, os bairros negros. Onde está a presença do Poder Público, por meio da oferta de equipamentos e serviços, está a população branca. Onde, muitas vezes, o Estado só se faz presente por meio do aparato repressivo, materializando esta condição de que o Brasil tem um dos maiores índices de morte de jovens negros e de feminicídio de mulheres negras, está a população negra. Nos bairros da periferia, a mão do Estado é, exclusivamente, a mão da repressão”, revelou Ângela Guimarães.

Ainda em sua fala, a presidente da Unegro pontuou sobre o compromisso da Defensoria. “Sempre faço referência ao compromisso institucional da Ouvidoria e da Defensoria como um todo na reversão destes padrões e deste sistema de exclusão que, historicamente, tem determinado quem vive e quem morre, quem é descartado e não é na cidade de Salvador, na Bahia e no Brasil”, enfatizou Ângela Guimarães.

Com sua experiência como professor de Arquitetura e Urbanismo, o coordenador do Grupo de Estudos Étnicos e Raciais em Arquitetura e Urbanismo – EtniCidades da UFBA, Fábio Velame, deu uma aula de história e exibiu imagens para dar “corpo, alma e pele” às questões abordadas. Através de slides, o professor falou sobre cidades coloniais, estamentais e escravocratas, invisibilidade dos negros e negras, precariedade dos lugares de negros nas cidades, protagonismo negro na produção das cidades e bairros negros.

O docente também deu sugestões sobre as diretrizes para construção de uma política antirracista, que, segundo ele, abrangem fortalecimento das Redes de coletividade, garantia da existência dos bairros negros, saúde coletiva, habitação, mobilidade, comunicação, segurança e foco nas áreas de preservação ambiental.

Na definição do professor, existir é habitar. E as formas de habitação dos negros nas cidades brasileiras, segundo ele, ocorreram sempre neste limiar da sobrevivência e da resistência. “No período colonial e imperial, resistíamos nas senzalas das fazendas e nas cidades, nas condições de escravos, sobrevivíamos nos sótãos, porões, lojas, quartinhos, quintais e mocambos. Na República, nos cortiços, favelas, ocupações, palafitas e empurrados em condomínios populares nas periferias sempre descartáveis em lugares marginais na dobra da cidade. O Estado escravocrata brasileiro nunca se preocupou com o lugar, habitar e existir do negro porque sempre fomos descartáveis e substituíveis na lógica do sistema”, constatou.

Eleições como caminho para a mudança

Em seguida, foi a vez da promotora de justiça do Ministério Público da Bahia e coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação – GEDHDIS, Lívia Sant’Anna Vaz, falar sob uma perspectiva político-jurídica. “O direito à cidade envolve também o exercício de outros direitos fundamentais, como liberdade, moradia digna, segurança pública, trabalho, lazer e meio ambiente”, explicou a promotora.

Lívia Vaz também falou sobre o quanto o fator raça está no centro das discussões sobre desigualdade, como é determinante para a vida e morte no país e como tem relação também com a Justiça e a política. “É primordial que o Sistema de Justiça tenha a cara do povo preto, especialmente em Salvador que tem mais de 80% de pessoas negras. Essas pessoas precisam estar representadas nos espaços de Poder e decisão – Executivo, Legislativo ou Judiciário – para alterar esta realidade. Nunca tivemos prefeito ou prefeita negros e isso impacta, sim, no direito à cidade. Precisamos de políticas públicas afirmativas em todos os espaços que foram negados, historicamente, às pessoas negras, e o poder político é um desses espaços”, garantiu.

Para encerrar a mesa-redonda, o mestre em Direito Público e presidente do Olodum, João Jorge Rodrigues, também deu uma aula sobre a história de Salvador e fez uma verdadeira linha do tempo, desde 1549, com a chegada de Thomé de Souza, até o tempo atual, marcado pela pandemia do novo coronavírus. E como bom baiano, destacou que, com a realização deste seminário, os participantes estavam “acrescentando molho e pimenta” nas discussões sobre o futuro, a melhoria da cidade e a importância de uma política antirracista.

“As primeiras propostas destas políticas antirracistas foram em 1798, na Revolta dos Búzios, com os avisos de que haveria igualdade e oportunidade e que a cidade deveria abrir o comércio para o exterior. Estas políticas continuam acontecendo, talvez não na velocidade que queremos, mas estão acontecendo desde este período. Salvador foi crescendo, se produzindo como diferenciada e tornou-se uma grande cidade, principalmente por sua maioria negra, com bairros e praias de nomes indígenas e, ao mesmo tempo, com grandes possibilidades de discriminação racial e social e a única, no mundo, onde o apartheid sobrevive até hoje”, afirmou.

Concordando com o que disse a promotora Lívia Vaz, o presidente do Olodum destacou que, às vésperas das eleições municipais, que acontecerão em novembro, a hora de decidir o futuro da cidade é agora. “A cidade precisa de mais políticas de ações afirmativas e antirracistas. Essa transformação pode vir através das eleições e da escolha de candidatos que fazem parte da população negra. Tudo que está acontecendo agora na pandemia pede e implora que a cidade mude! É lição para o futuro! Que a cidade seja honesta e justa com seus moradores”, aconselhou.